ADRIANO JOSÉ DE CARVALHO E MELO
O
Marco de Canaveses tem muita gente que fez da sua Terra uma terra decente.
Basta conhecer a sua história, conhecer a postura dos seus melhores
filhos, para que nos entristeça ouvir falar do Marco de Canaveses como a terra
do “mata e queima”, do Zé do Telhado ou, ainda, de algumas figuras grotescas.
Não é
possível dar a conhecer todas as personalidades que nos honram como nossos
conterrâneos. Mas é pena que não se faça! E não me refiro a Carmem Miranda que
só se tornou notável, porque o seu pai a tirou do Marco e a levou, em tenra
idade, para o Brasil. Se continuasse na terra onde nasceu (que nunca adoptou!)
pertenceria hoje ao imenso número de gente desconhecida, a que ninguém
ligaria absolutamente nada.
Lá
aonde estiver, a Carmem Miranda só pode agradecer aos brasileiros a
notabilidade que granjeou e há-de rir-se dos marcoenses, quando se servem do
seu nome para o colocar em ruas e museus e esquecem o abandono a que a votaram
em menina. Podia ser uma autocrítica a relevância que lhe dão, mas parece uma
festa semelhante à dos cucos que põem os ovos nos ninhos dos outros para
criarem os seus filhos.
Merecia
muito mais relevância, por exemplo, José Monteiro da Rocha, Reitor da
Universidade de Coimbra, criador do observatório astronómico e chefe da missão
que teve como objectivo estabelecer os acordos de paz com as tropas
napoleónicas. Nasceu e cresceu em Canaveses e nunca esqueceu a sua Terra. Ou,
então, os criadores do Concelho, os Homens que estiveram na origem na Misericórdia
do Marco, dos Bombeiros (e que nesta missão morreram) os que se distinguiram
nas artes, na ciência, etc.
É este
tipo de gente que me interessa! Nela poderemos configurar o sentido de ser
marcoense, incapaz de renunciar à sua Terra, mas sempre empenhado em
dignificá-la, sem esperar qualquer recompensa.
Precisamos
de referências exemplares que estimulem a ligação à nossa Terra, façam a coesão
social e cimentem os laços de confiança que promovam o gosto de ser marcoense,
de investir no seu Concelho e sentir como seu sucesso, o sucesso da sua
autarquia.
Aliás,
não é este sentimento que dá sentido à ideia de autarquia e de cidadania,
“governo dos próprios pelos próprios”?!....
Não se
constrói o espírito autárquico, sentindo-nos náufragos, numa ilha entregue a um
só homem, deixando-nos à sorte dos nossos próprios recursos. Ou então,
ficando como um bando de cucos, sempre à espera de ninhos onde possam colocar
os seus ovos.
A
origem do concelho do Marco não é muito longínqua. Surgiu em meados do
séc. XIX. A sua criação deveu-se ao deputado da Nação, Adriano José de Carvalho
e Mello, nascido no lugar da Picota, em Tuas, e por isso conhecido por sr.
Adriano da Picota. E teve uma justificação forte para que a Assembleia e o
Governo do reino aderissem á sua ideia.
Nessa
altura, campeavam pelos diferentes comarcas grupos de pobres diabos, que,
durante a noite, com armas de carregar pela boca, intimidavam viajantes para os
roubar e assaltavam casas nobres para sacar o ouro e a prata que trocavam por
poucas patacas nos receptores que, com isso, tal como hoje, ficavam mais ricos
do que os que roubavam pela acção directa. Um desses chefes foi Zé do Telhado,
um antigo combatente da pacificação de Africa galardoado com a medalha de Torre
e Espada.
Abandonado
pela pátria que serviu, fez aquilo que sabia fazer: comandar um pequeno grupo
para defender o pão que faltava à sua família. Tornou-se, nessa matéria, um
empreendedor, tão esmerado que até se dizia que “roubava aos ricos para dar aos
pobres”. Se fosse hoje, e quisesse inverter a causa “roubar aos pobres para dar
aos ricos” poderia muito bem ter chegado a banqueiro.
Assaltou
a Casa de Carrapatelo e matou um criado. Foi uma péssima referência para a
Região. Ficando sem castigo, manchava a própria dignidade do povo desta
terra. Assim o percebeu o Sr. Adriano da Picota, quando jurou que o
prenderia.
Prendê-lo
e à sua quadrilha, estivessem onde estivessem, obrigava a uma reforma
administrativa que desenvencilhasse as autoridades dos empecilhos burocráticos.
Não era permitido à polícia entrar numa comarca sem autorização do seu
administrador.
O
deputado Adriano José de Carvalho e Mello não ficou pela retórica das boas
intenções. Não separou o Zé do Telhado do seu grupo, como muitos costumam
fazer, e para alargar o âmbito das investigações da sua polícia, propôs à
Assembleia e ao Governo do reino que fosse unida a comarca de Soalhães à grande
comarca de Benviver, que compreendia uma grande extensão, indo de Gouveia até
S. Lourenço do Douro, tendo em Sande a sua sede.
Apresentou
essa ideia na Assembleia e ao governo da Coroa e lutou, sem o
alardear que hoje é costume, para que o concelho de Soalhães e de
Benviver se tornassem numa única comarca, sugerindo que o novo concelho
se denominasse Marco de Canaveses.
Pelo
Decreto de 31 de Março, em 1852 foi, então, criado o Concelho do Marco de
Canaveses. No artº 1º estabelecia: “São reunidos num só concelho, os concelhos
de Soalhães e de Benviver”. E no artº 2º dizia-se: “O novo concelho
passa a ser denominado Marco de Canaveses” e os seus habitantes marcoenses (do
Marco, escrito com “o” não com “u”).
A esta
distância, a reforma administrativa que o sr. Adriano da Picota promoveu
levanta uma questão: por que se lembrou Adriano José de Carvalho e Mello
de denominar Marco de Canaveses o novo concelho, se não há nas comarcas
aglutinadas algo que deixe antever essa designação?!...
Adriano
José de Carvalho e Mello, para além de deputado, fora administrador do
concelho de Soalhães, com Casa Municipal no “lugar do Marco”. Ali, antes de ser
construída a casa municipal, havia um marco de pedra que limitava dois coutos
que vieram a dar origem às freguesias de Fornos, S. Nicolau e Tuias. Situava-se
na planura onde se levantou a Casa Municipal e, hoje, está o edifício da
Câmara Municipal.
Canaveses
era uma Beetria; isto é, uma importante povoação rural que desde a alta Idade
Média tinha o privilégio de escolher livremente os senhores que reunissem as
melhores qualidade para defender o bem-estar do povo da localidade. Isso era a
maior exigência duma povoação que tivesse grande desenvolvimento
económico e era o que lhe dava mais prestígio.
A
toponímia Canaveses terá a ver com três circunstâncias: o lugar situado junto
ao Rio Tâmega proporcionava a cultura do linho “cânave”. Os que o produziam
eram os “canaveses”, como se dizia no português antigo. Por outro lado, por ali
terá passado a estrada romana Tamacana-Via e os que ali habitavam “tamacanavienses”
que se foi simplificando até canavienses e, logo depois, canaveses.
Acresce, ainda, que nesse lugar também havia as “Aquae Tamacanae”
conhecidas, hoje, por Caldas de Canaveses.
A
simplificação fonética foi determinando que o local se fixasse em Canaveses e,
como podemos inferir, com o grande prestígio que lhe vinha de ter sido uma Beetria,
o sr. Adriano da Picota não teve dificuldades em convencer a Assembleia e o
Governo da coroa de que o novo concelho fosse designado por Marco (a que
pertencia a “Casa municipal”) de Canaveses, fixando a sua centralidade
nesta região.
Com as
condições criadas, a polícia que estava às ordens do administrador Adriano José
de Carvalho e Mello foi prendendo os quadrilheiros, só escapando o Zé do
Telhado. Entretanto, José de Carvalho e Mello deixou o cargo de primeiro
administrador do concelho do Marco de Canaveses e foi ocupando outros cargos,
como o de governador-civil de Bragança, de Braga e, por fim, Comissário da
Polícia do Porto. Nunca esqueceu a sua promessa e com estas novas
competências a expensas suas (nessa altura, com o fontismo, Portugal entrou na
bancarrota) mandou fardar, armar e preparar um corpo da polícia que apenas
tinha como objectivo prender para ser levado à Justiça o Zé do Telhado. E
conseguiu-o: descobriu-o na Ribeira do Porto, escondido debaixo de um lote de
caixas de bolachas que, no barco “Oliveira” se preparava para levantar âncoras
em direcção ao Brasil.
Não
sabemos o que faria, hoje, o sr. Adriano da Picota, se os ladrões e seus
cúmplices fossem os de colarinho branco! Se procedesse como procedeu em
relação ao Zé do Telhado, teríamos de concluir que não separava o chefe da
quadrilha dos acompanhantes, os de colarinho branco dos maltrapilhos, e, por
isso, sabia defender as virtudes da honra e da dignidade que constituem o
valor fundamental da democracia e da cidadania numa Terra de gente decente.
João Baptista Magalhães
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