Comemorou-se
os quarenta anos do poder local, mas o que deveria ser feito era uma romagem ao
cemitério dos cravos de Abril.
O poder
local foi uma das principais conquistas do 25 de Abril. Foi a expressão da
democracia participativa, a esperança das populações tomarem conta do seu
próprio destino sem andarem com o chapéu na mão, o fim da subserviência aos caciques locais que, na generalidade, eram
os agentes do governo para controlo das populações.
Com o 25 de
Abril, o poder local ganhou a sua própria especificidade e deixou de ser um ramo do poder central. Obviamente, participa
da natureza do Estado, mas com um outro modelo: ser a voz das populações locais
muitas vezes em conflito com o poder central, a expressão de uma democracia participativa
e de uma cidadania activa.
Alexandre
Herculano considerava que o municipalismo, como expressão do poder popular, era a única organização
social capaz de mobilizar e valorizar os actores locais, aqueles que sabem
assumir o papel de interpretar os anseios das populações, e, assim, promover o
desenvolvimento das comunidades.
E quando se
dizia que não havia democracia sem partidos era porque se pensava que o papel
dos partidos prendia-se com a inserção dos seus militantes nos movimentos sociais,
contribuindo com a sua forma de ver a vida, o homem e o mundo, isto é, a sua
ideologia, para a promoção do desenvolvimento e resolução dos problemas das
populações. Hoje, muitos militantes partidários nem sequer participam na
organização do rancho folclórico da sua freguesia. Ocupam os espaços da
democracia como noutros tempos se ocupava os lugares nos salões onde se jogavam
as cartas ou se servia um chã. A política tornou-se num jogo de ilusões, sem
inserção nos movimentos sociais, com excepção da actividade sindical.
Fui um
entusiasta do poder local! Cheguei a fazer um pequeno livro, com desenhos do
meu querido amigo Cunha, subordinado ao tema: “viva, viva, o poder popular!”
Nessa
altura, havia os conselhos municipais, de que fui presidente até à sua
extinção. Estava lá por ser o presidente da direcção dos bombeiros. Não eram órgãos, como hoje, de intervenção
disciplinar, como é o conselho da educação, mas de representação do comércio,
da indústria e de associações.
O Conselho
Municipal funcionava como uma espécie de segunda câmara de aconselhamento das
políticas autárquicas. Entendia-se que a autarquia, pela sua própria natureza
de poder local era distinta do poder central. Cabia-lhe dar reposta às preocupações da vida local, satisfazer as
suas necessidades básicas de saneamento e abastecimento de água, promover o desenvolvimento harmonioso do
concelho, defender o património ambiental, monumental e gastronómico. Quando se
falava em confraria, falava-se na promoção dos restaurantes que deveriam ser
uma carta de apresentação da culinária do concelho e não numa feira de vaidade.
A partir dos
anos 80, as autarquias tornaram-se o lugar mais apetecível para todo o tipo de
corruptos: uns foram presos, outros conseguiram que os seus processos
prescrevessem e ainda outros depois de um tempo “sabático” voltaram a retomar a
vida política. O perfil de um autarca
alterou-se: deixou de ser a pessoa que representa os anseios de uma população e
passou a ser o gestor de um território. Privatizaram-se bens públicos, como a
água, passou-se a entregar serviços aos apaniguados do partido do presidente,
criaram-se empresas municipais para satisfazer clientelas, apareceram os
empreiteiros do regime que, em troca, vão pagando as campanhas eleitorais, e
enxameou-se os lugares da autarquia com boys. E como o poder aumenta com a
capacidade de satisfazer clientelas, já só querem mais poder com mais
descentralização e menos controlo de responsabilidades na má gestão. Querem ser
gestores, mas sem assumirem as responsabilidades da má gestão, como acontece em
todas as empresas.
Não aprendemos
nada com os erros do passado. Durante os períodos descentralistas, como foram
os anos de 1836, com Passos Manuel, de 1878, com Rodrigues Sampaio e de 1886,
com Luciano de Castro, a descentralização promoveu um desmesurado caciquismo,
uma corrupção imensa e um endividamento que quase fez parar a máquina do estado.
Sofremos a humilhação do Ultimato, caímos em 1902 na bancarrota e só em 2001,
no tempo de Guterres, foi saldada a dívida então contraída.
Não podemos
generalizar, mas temos de dizer que Júlio Dinis tem mais razão que Herculano,
quando verberava: “As autarquias são o reino dos caciques!”
Uma lógica
de facilitismo irresponsável associa-se, hoje, à ideia de que descentralizar é
desburocratizar e promover o desenvolvimento.
A democracia
para ser transparente tem de ter regras e é o Império das regras ou das leis
que evita o arbítrio e o esbanjamento.
Não é por
acaso que a promiscuidade entre a política e o futebol cada vez torna estes
mundos mais semelhantes. O futebol deixou de ser um desporto e tornou-se numa
indústria, e os partidos, nomeadamente do bloco central, foram substituindo a
ideologia pela indústria de empregos e novo-riquismo.
O poder
local não existe: a maioria dos autarcas não são da terra a que presidem e
quase todos eles não foram escolhidos pela sua inserção nos problemas da vida
das pessoas em comunidade. São quase todos doutores, homens de muita lábia, mas
com pouco sentido de estado.
Comemoraram-se
40 anos do poder local com a espectacular verborreia de gente que não sabe o
que isso é!
Podia-se ter
aproveitado estas comemorações para uma reflexão sobre os movimentos locais ou um
congresso sobre os problemas locais, mas só
se aproveitou a data para fazer elogios a gente que nunca fez nada pelo
desenvolvimento do poder local.
Vamos
andando distraídos, perdemos a nossa capacidade de intervenção e não percebemos
que isso nos vai ficar muito caro! Depois vão-nos ao bolso com impostos ou
agravamento de licenças.
João
Baptista Magalhães