Beato Goncalo Dias
Poucos saberão que um
folhadense do séc. XVII se tornou numa das figuras mais veneradas na América
Latina: o beato Gonçalo Dias.
Que pena continuarmos
a atirar para o esquecimento um homem bom, que fez da sua vida um serviço da
sua fé e que percorreu o mundo a fazer o bem, sendo por todo o lado admirado e
considerado um santo. No Peru, mais propriamente na cidade de Callao, conhecida
na altura por Cidade dos Reis, onde está sepultado, Gonçalo Dias tem fama de
santo, sendo inúmeros os milagres que lhe são atribuídos e inúmeros os pedidos
de graças que lhe imploram.
Por cá, na terra onde
nasceu, viveu a sua juventude e terá feito amigos, até as silvas escondem o
cruzeiro que sinaliza a sua presença, no lugar do Barral, em S. João da Folhada,
junto às ruínas da modesta casa onde viveu e que dizem já ter servido de corte.
Apenas na Igreja da paróquia existe uma sua imagem, única no País.
O abandono a que foi
atirado este Santo nosso conterrâneo não tem justificação. É verdade que a
sociedade tende mais para a submissão do que para a gratidão. Suporta os que
têm o poder de a prejudicar e venera os que a desprezam; está mais disponível
para dar fama aos que a exploram do que àqueles que a servem e se recusam a
submetê-la às mais deploráveis situações. Parece que o povo, a quem ele mais
serviu, ainda não se emancipou da “servidão voluntária”.
Já no tempo de Cristo
isso acontecia: a sociedade precisava de um salvador e ele veio, curou dez
leprosos, mas apenas um voltou para agradecer. E quando o mestre lhe perguntou:
“ Não foram dez os que curei? Onde estão os outros?” O agraciado exclamou:
“Senhor, eles se foram!...”
Até Jesus sentiu que o
descartavam! Mas este pessimismo sobre a natureza humana só se corrige pela
educação e, temos de confessar, que nas sociedades de consumo, a gratidão é a
virtude mais desprezada. E não há gratidão sem memória. Segundo
Yourcenar, é a memória o grande arquiteto das almas. Só com o recurso à memória
é possível reconhecer o valor social do mérito e moldar as consciências
individuais e coletivas no sentimento de justiça, gratidão e honra,
estabelecendo que o bem vale a pena ser seguido e o mal evitado. O esvaziamento
da memória foi sempre um sintoma de crise e de desagregação social.
Cruzeiro que assinala o local onde nasceu Beato Gonçalo Dias
Recordemos, por isso,
a vida e obra do nosso conterrâneo de S. João da Folhada, beato Gonçalo Dias.
Sabemos que nasceu no lugar de Barral, não muito longe da Igreja da Folhada, em
1548, três anos após ter sido iniciado o mais longo conclave da história da
Igreja, o Concílio de Trento (1545-1563).É possível que o nome Gonçalo lhe
tenha sido dado por homenagem a S. Gonçalo de Amarante, cuja fama de ter
existido e feito muitos milagres era já muito grande.
Segundo o seu
biógrafo, Frei Filipe Colombo (“Vida del siervo de Dios, Gonçalo Dias”), os
seus pais eram Baltasar Dias e Antónia Barbosa. A sua mãe enviuvou cedo. Os
seus avós maternos, Aleixo Barbosa e Maria Antanhez, já viviam no Barral e eram
lavradores dependentes da Colegiada (cónegos) de Guimarães.
Da parte do pai, os
seus avós eram Gonçalo Peres e Polónia Dias. Residiam na freguesia vizinha,
Várzea de Ovelha, ele no lugar do Rego e ela no de S. Lourenço.
Tudo indica que eram
proprietários abastados e fervorosos crentes. Só isso justifica que se tenham
recusado a aceitar que, após a invasão dos mouros, a antiga ermida de S.
Lourenço, em Gouveia, continuasse ao abandono e em ruína. Estimulados pela sua
fé, os avós de Gonçalo Dias decidiram, a expensas próprias, reconstruir a
capela para que fosse retomada a devoção ao Santo Mártir do séc. III.
Talvez o exemplo de
dedicação total à Igreja por S. Lourenço, tenha no imaginário de Gonçalo Dias
despertado a sua vocação. Este Santo Mártir nasceu por volta dos anos 230,
segundo uns, em Valência ou, para outros, em Huesca (capital da província de
Aragão). Viveu no tempo das cruéis perseguições aos cristãos pelos imperadores
romanos. Ele próprio assistiu à prisão e decapitação do papa Sisto II, de quem
era secretário. E quando o Imperador Valeriano o intimou a entregar todos os
bens que a Igreja possuía, S. Lourenço chamou todos os pobres, de todas as
idades, que a Igreja socorria e levou-os ao Imperador, para que visse que o
património da Igreja era cuidar dos pobres. Com isso, despertou a ira de
Valeriano que mandou de imediato prender S. Lourenço. Em seguida ordenou que
fosse colocado numa grelha e queimado vivo.
Diz a lenda que o
Santo, para demonstrar a sua abnegação à vida e dedicação aos seus ideais
cristãos, terá dito aos seus carrascos: “Podem virar-me agora, este lado já
está bem assado”.
S. Lourenço passou à
história como um modelo perfeito da absoluta dedicação a Deus e, por isso, a
reconstrução da capela e sua abertura ao culto, trouxe ao local, onde ainda
hoje se situa, muito prestígio, passando a ser passagem obrigatória de peregrinos
que, atravessando a Folhada pela Ponte do Arco ou seguindo por Jazente em
direção à capela de Santiago de Lufrei, rumavam ao S. Gonçalo de Amarante ou em
direção a Santiago de Compostela.
Embora Gonçalo Peres e
Polónia Dias fossem agricultores abastados, não se pode dizer que isso
acontecesse com os pais de Gonçalo Dias. Ou porque os anos maus trouxessem
reveses ou porque os bens do seu progenitor fossem da Igreja, no caso de ser
padre (antes do Concílio de Trento, os padres podiam ser casados) ou, então, a
sua família não vinha na linha dos primogénitos (filho mais velho que ficava
com o direito à herança), Gonçalo Dias viveu uma infância com muitas
dificuldades.
Encosta da Aboboreira
Chegado à
adolescência, foi guardar ovelhas para a Serra de Aboboreira. Este local de
deslumbramento permitiu-lhe entregar-se à contemplação da natureza e do seu
Criador. Nessa altura, o então Abade de S. João da Folhada, ao notar a sua
predisposição para a espiritualidade, convenceu-o a ir para Amarante e, com os
frades dominicanos do Convento, aprender gramática e latim.
Acumulou os seus
estudos com tarefas de enfermeiro no hospital que existia bem perto do
Convento. Aí prestava assistência aos peregrinos que iam para Santigo de
Compostela ou vinham da Galiza em romagem a S. Gonçalo.
Deu-se, então, uma
circunstância que havia de ser determinante para o rumo que haveria de dar ao
seu futuro. Entre os muitos peregrinos que vinham pagar promessas a S. Gonçalo,
surgiu um grupo de marinheiros castelhanos, que precisaram de recorrer aos
cuidados do enfermeiro.
Gonçalo Dias foi-se
apercebendo da vida de riscos e sacrifícios dos homens do mar. E, depois de uma
meditação sobre Santo Agostinho, pensou que se alguém os ajudasse a aceitar
pela obediência a Deus esses sofrimentos e infortúnios da vida melhor salvariam
as suas almas. Entendeu dever cumprir essa tarefa, seguindo a vida de
marinheiro. Foi marinheiro, trabalhou nos barcos de portugueses até que um dia
colocou a si mesmo o seguinte dilema: embarcar para a Índia Oriental (América
latina) com os espanhóis ou para África com portugueses.
Dizem que o seu
pensamento foi sempre o de considerar que não há vida feliz sem o mínimo de
vida, uma vida despreocupado das ambições e orientado por uma austeridade,
vivendo do mínimo necessário para viver. Receou que pudesse entrar no seu
coração a maldade do consumismo, trazendo-lhe a cobiça pelos tesouros que ouvia
dizer que naquelas partes da América Latina abundavam. Mas também não tinha a
certeza se deveria seguir o apelo que sentia para evangelizar os povos nativos
de África.
Perante este dilema,
decidiu pedir ajuda a Santiago e partiu em peregrinação (do latim “per agros”,
através dos campos) até Compostela.
Segundo o seu biógrafo
Colombo, fez o trajeto a pão-e-água, e, sempre que se maravilhava com aves, animais
e plantas, dava graças a Deus pela sua obra. Chegado ao túmulo de Santiago,
pediu-lhe que intercedesse por ele junto de Deus, no sentido de receber a luz
que precisava para tomar o rumo que mais agradasse a Deus Nosso Senhor. E,
depois de muita oração, sentiu que o seu coração estava preparado para recusar
a desmesura das ambições, não estava acometido pela doença da húbris
(desmesura) que levava à obsessão pela riqueza e que Santiago lhe abria
as portas da Índia Oriental.
Conseguiu ser aceite
como marinheiro nos Galeões Reais de Espanha. E não tardou que as suas
virtudes, a sua dedicação, capacidade de resistir às adversidades e convicção
religiosa fossem reconhecidas e admiradas por todos os homens do mar que com
ele iam convivendo.
Local denominado Calvário (Folhada)
Na altura em que
passou pela República Dominicana, o barco em que navegava naufragou. Foi um dos
poucos sobreviventes. Depois de muitas dificuldades, acabou por ser recebido
num dos conventos dos mercedários (Ordem das Mercês, donde vem o nome de
Mercedários. Foi criado, no reino de Aragão, por São Pedro Nolasco em 1218)
dessa terra espanhola. Vê nisso um apelo divino para ingressar nessa ordem, mas
resistiu a fazê-lo.
Volta á vida de
marinheiro. Doenças e outros contratempos levaram-no a julgar que todos esses
infortúnios eram um castigo por não ter dado assentimento ao chamamento que
sentiu.
Pensou, então,
corrigir o seu desvio, ingressando na Ordem das Mercês. É nesta altura um
fervorosíssimo devoto da Virgem das Mercês, a mesma que aconselhou S. Pedro
Nolasco a criar a ordem que tinha por objetivo libertar os cristãos que foram
presos pelos mouros.
Para conhecer melhor a
vida de frade, passou algum tempo nos conventos dessa ordem no Panamá e na
cidade de Payta.
Em 16 de Outubro de
1603, pediu o seu ingresso no Convento de Callao[1], cuja cidade era
também conhecida por Cidade dos Reis.
No próximo post
continuamos com o beato Gonçalo Dias: a sua vida de Frade dos mercedários no
Perú e o reconhecimento da sua santidade.
João Baptista Magalhães
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