segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Tabuado


Igreja Românica de Tabuado


É talvez a mais interessante freguesia do Concelho do Marco de Canaveses. Por ali passou uma via romana e uma das rotas que levava os peregrinos até Santiago de Compostela.
Sabemos que foi vila e, possivelmente, desenvolvida sobre os alicerces de uma antiga citânia. As vilas surgiam geralmente assim. Com a reconquista cristã, feita por aqueles que colocavam o hábito sobre uma armadura e, confiantes de que “Cristo velava pelos seus”, correram com os mouros, Tabuado foi entregue aos cavaleiros monásticos da Ordem dos Templários.
O local deveria ter sido estratégico, porque o seu topónimo sugere ter recebido o nome da armação de tábuas, o “tabulato”, que era aí colocado para servir de alvo no treino militar. E pode ser que o “Heremita de Tabulato”, a que se refere Alexandre Herculano,  seja o cruzado zelador desse centro de treino.
Os Templários terão seguido o modelo de organização da nação como era discutido nas cortes. Nessas reuniões, tinham assento nobres, bispos, abades de mosteiros e de outras ordens. As primeiras terão sido celebradas, entre 1095 e 1108, no tempo do Conde D. Henrique.
Naturalmente, a construção de um mosteiro não visava apenas a dilatação da vida espiritual, mas também significava estender um braço do poder, que se manifestava nas cortes, às terras conquistadas aos mouros.
Os Templários, ao construírem um mosteiro em Tabuado que, em seguida entregaram aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, terão aproveitado a jurisprudência tradicional da Vila para a integrar no modelo administrativo que os abades e os bispos conheciam  na corte.


 Torre da Pena

Assim se explica que em frente ao Mosteiro, onde hoje é a igreja, tivesse havido uma mesa e bancos de pedra, onde os homens bons, a quem tinha sido delegado o poder, se reuniam para  discutir as questões da comunidade e tomar decisões. Além disso, dotaram a vila de um juiz ordinário do cível e dos órfãos, que terá exercido o seu poder na torre da Pena. Mas, no âmbito do crime, tinham de responder no concelho de Gouveia-Ribatâmega, ao qual Tabuado pertencia. A torre da Pena sinaliza esse poder,  como acontecia com as torres das casas grandes, como era a de Nevões.
Os conflitos, na disputa de terras entre a ordem religiosa e os fidalgos, obrigou D. Afonso Henriques a confirmar, por carta de couto, a posse pelo convento das terras de Tabuado.
Mas a disputa de terras não terá terminado. D. Afonso III, em 1258, empreendeu inquirições por todo o reino para que os seus enviados verificassem “in loco” quais as terras que se encontravam em posse indevida do Clero ou da Nobreza.
As melhores informações sobre a história destas terras, vêm, por isso, das inquirições reais, que foram em 2014 compiladas em dezenas de volumes com a designação de memórias paroquiais. 


 Torre de Nevões

Tabuado foi Vila e Couto. Segundo Pinho Leal (“Portugal Antigo e Moderno”), o primeiro senhor de Tabuado foi Diogo de Barros. Pelo casamento de uma das suas netas, a sétima, com Sebastião Pereira Correia Montenegro este tornou-se no primeiro morgado de Tabuado, residindo no Solar da Torre de Novões.
No séc. XII, terá havido em Tabuado dois templos: um dedicado a Santa Maria e outro ao Salvador, uma referência a Jesus Cristo, muito invocado pelos cruzados. Só este chegou até ao nosso tempo e é o orago da Igreja românica que actualmente existe.
A igreja possui uma monumentalidade que a torna num dos melhores exemplos da época românica. Dispõe de uma pintura mural da imagem de Cristo Salvador que é exemplar único.
No séc. XV, a pedido do bispo do Porto, o papa Sisto IV, que foi responsável pela instituição da terrível inquisição em Espanha, terá sido chamado a resolver uma querela de disputa de interesses ligados às terras de Tabuado entre clero e fidalgos. Resolveu a questão, reduzindo o couto a uma abadia secular e entregou-a ao bispo do Porto, mantendo, por outro lado, o direito de padroado ao morgadio dos Montenegros.
Tabuado passou, então,  sob o ponto de vista eclesiástico a pertencer ao concelho de Canaveses e à diocese do Porto, mas sob o ponto de vista administrativo, em 1736, ainda pertencia à comarca de Guimarães e ao concelho de Gouveia-Ribatâmega. Depois fez parte do concelho de Soalhães e com a reforma liberal do século XIX foi integrado, com a designação de freguesia, no concelho do Marco de Canaveses.
As muitas capelas que se localizam em Tabuado sinalizam que a freguesia recebeu importante influência de ordens religiosas e teve destaque no apoio a peregrinos.
As personalidades ilustres de Tabuado foram muitas e muitas são as narrativas em que estão envolvidas. Convém, no entanto, lembrar que em boa verdade, todos os escritos que se conhecem anteriores à fundação da Academia Real de História, no séc. XVIII, têm carácter proselitista, estão mais próximos das lendas do que da história. E mesmo, quando D. João V, a pedido de D. António Caetano de Sousa e de D. Francisco Xavier de Meneses, criou a academia, em 1720, foi para fazer biografia fantasiada de reis e fidalgos e não para narrar factos objectivos. A história foi sempre uma das perspectivas possíveis  do que aconteceu e há sempre muita dificuldade em encontrar a história do passado, desprovida de fantasias.
Entre as personalidades do século passado que mais prestigiaram Tabuado, conhece-se Fernando de Miranda Monterroso, médico e herói das campanhas de pacificação em África e herói da Grande Guerra; Costa Santos, notável Médico; Borges Araújo, notário e advogado; Amadeu Marramaque, presidente da Câmara do Marco; Ramiro Afonso Pontes, advogado e conservador do Registo Civil, um dos fundadores da PROMARCO, a quem se deve a estrada que liga duas aldeias da Serra da Aboboreira,  e um dos últimos social-democratas que o Concelho conheceu; Joaquim Monteiro, jornalista e poeta, etc.
Não pretendemos esgotar o muito que há a dizer sobre Tabuado, mas apenas despertar a memória desta Terra, cientes de que quanto melhor a conhecermos, melhor nos sentimos identificados com as nossas raízes.
João Baptista Magalhães
 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Por favor, deixem a Baiana em paz!



Carmem Miranda
 

Pelo que leio, alguns protocandidatos à Câmara do Marco de Canaveses ainda não deram conta que há marcoenses. E este foi o grande flagelo do  nosso Concelho, que ainda não está coberto por saneamento público e tem problemas enormes, desde o da água aos cuidados de saúde. Pensam que o Marco de Canaveses é só Carmem Miranda e a Gala do Desporto?!...
É uma espécie de defesa da política pimba!
Naturalmente, haverá quem a propósito disso faça negócio com peças de ourivesaria ou porcelana, mas o retorno para o Marco de Canaveses não é nenhum.
Cármen Miranda detestava o Marco e Portugal. Só por ter nascido na Légua não valia a pena fazer dela um instrumento de propaganda política. E nada de original há nisso! Apenas segue a estratégia que o assessor das cartas anónimas sugeriu a Ferreira Torres: que a tornasse bandeira da sua propaganda caciqueira.
Eu estava na Câmara, (Comissão Administrativa), quando a documentação sobre Carmem Miranda foi para lá enviada. Na altura, sugeri que fosse posto uma placa na casa onde nasceu e mais nada.
O seu pai, barbeiro, que usava por generosidade um espaço da casa do capitão Assis, emigrou para o Brasil para fugir à miséria que se vivia em Portugal. A sua esposa, Maria Emília, ficou, porque estava grávida. Aguardou, por isso, o nascimento da filha e mal recebeu carta de chamada, seguiu o caminho do marido, acompanhada da filha mais velha, Olinda e de Cármen, tendo esta menos de um ano de idade.
Carmem Miranda, por circunstâncias que não vale a pena descrever, tornou-se célebre e com passaporte brasileiro acabou por fazer carreira na Broadway. Não gostava de Portugal e chegou a afirmá-lo. E não é para admirar: os seus pais fugiram da miséria que nesse tempo se vivia no País onde nasceu. A monarquia estava agonizante e o País na bancarrota.  Regressar ou até falar de Portugal, era lembrar a terra que a obrigou a fugir da miséria e as convulsões  da primeira república. E, quando estava no apogeu da sua carreira, 1930-1950, a terra onde nasceu era gerida por um ditador, não havia liberdade, perseguia-se por delito de opinião e a arte, a música e o cinema tinham de ir à censura. Nesse Portugal pobre e triste, a forma como ela se apresentava em palco era um atentado aos bons costumes. Nessa altura, até se ia a Fátima descalço, o que levou, mais tarde, Salazar, em vez de oferecer calçado, proibir andar descalço nas ruas.
Agora, há gente que não percebe que a propaganda a Carmem Miranda só serve o populismo e a demagogia. Não serve, por certo, os interesses da boa imagem dos marcoenses, nem de Portugal. Talvez só sirva os interesses de Salazar, porque este representa os governantes que criam as condições para que os cidadãos, tal como o pai de Carmem Miranda, tenham que emigrar.
Por favor, deixem a Baiana em paz!
Esta política de instrumentalizar Cármen Miranda só deprime quem gosta da sua terra, é democrata e quer orgulhar-se de ser português!
Temos tantos marcoenses com imenso valor, muitos foram grandes beneméritos da nossa Terra, e continuam esquecidos. Por que será? Será porque não dão votos?!..
João Baptista Magalhães

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

CONCELHO DE SOALHÃES


Pelourinho de Soalhães

         Soalhães terá já existido como povoado muito antes da formação da nacionalidade. E a sua toponímia recebeu-a de sunilanis ou suylanes, palavra que deve ter a ver com o facto de ser um local soalheiro, de terras muito férteis e irrigadas. Foi uma vila romana e, por certo, mais tarde ocupada  pelas invasões dos muçulmanos e reconquistada pelos cruzados.  Não é por acaso que um documento de 865 refere a existência em Suylanes de um mosteiro de freiras e frades da ordem de S. Bento.  O seu fundador parece ter sido um tal Sancho Ortíz ou Ortiga que tudo indica ser um importante cruzado que por aqui andasse a defender os cristãos contra os mouros.  Foi buscar ao bispo de Tour, S. Martinho, o patrocínio do Mosteiro, precisamente porque este alto clérigo, que viveu no séc. IV, era filho de um comandante romano e converteu-se ao cristianismo. Muito venerado pelos seus milagres (quem não se lembra do dia de S. Martinho!) e por ter fundado o mais antigo mosteiro conhecido na Europa. E Ortiz terá querido divulgar o exemplo do Bispo e manifestar a devoção que lhe prestava ou pagar-lhe alguma promessa com a construção do mosteiro e a doação, para a sua subsistência, da sua quinta de Ortiz, entre outros bens.
         Seria estranho construir-se um Mosteiro, se por ali perto não houvesse um povoado relevante. Os mosteiros construíam-se sempre fora dos povoados para que os monges não fossem perturbados na sua meditação, mas precisavam sempre que bem perto ficasse um povoado para exercerem testemunho da sua vida espiritual e suprirem as carências necessárias à vida do dia a dia. É até muito possível que esse povoado tivesse derivado da muito remota ocupação da Aboboreira iniciada por povos da pré-história, que as dezenas de mamoas e dolmens dão testemunho.
         Por volta do séc. IX,  na altura em que se julgou terem sido descobertos os restos mortais do Apóstolo Santiago, que deu o nome a Santiago de Compostela, este lugar rapidamente se tornou numa alternativa às grandes peregrinações a Roma e a Jerusalém e ganhou jurisdição religiosa sobre as dioceses da  Galiza.
         Por Soalhães, fizeram caminho muitos dos peregrinos que vinham de diferentes partes, seguindo antigas vias romanas que levavam nomeadamente a Braga, principal entroncamento de peregrinações, da qual se dizia: “ Braga reza… e os céus enchem-se de cânticos e louvores ao apóstolo Santiago”. A capela de Santiago testemunha esse  itinerário de peregrinos.
         O Mosteiro de S. Martinho ganhou muito prestígio e dispunha de rendas abundantes. Só isso justifica que no ano 1029 os frades do Mosteiro tivessem ido a Castela queixar-se ao Rei, Fernando Magno, da apropriação do direito de padroado que lhes queria fazer o cavaleiro secular Garcia Moniz, neto (só no séc. XVI, com o concílio de Trento, apareceu o celibato na Igreja) do bispo Gonçalo Moniz que conquistou o Porto aos Mouros e se achava senhor das terras que iam até Riba Douro.
         Os conflitos de jurisdição de padroados eram frequentes nos séculos XI, XII e XIII. A maioria das terras pertenciam à Igreja e o bispo era uma autoridade não apenas religiosa, mas também politica. Podia decidir a entrega de terras a seu bel-prazer e isso gerava por vezes conflitos. E quando isso acontecia, recorria-se ao Rei e depois ao Papa. Talvez, por isso, em 1103, o papa Paschoal II, numa bula enviada ao arcebispo de Santiago, D. Diogo Gelmires, que tinha jurisdição sobre as dioceses de Braga e do Porto, extinguiu o mosteiro de Soalhães.
         Entregou o padroado do Mosteiro à família Moniz, da qual haveria de fazer parte Gonçalo Viegas de Porto Carreiro, um nobre cavaleiro, que instituiria o morgadio de Soalhães. No ano 1238 já não se fala do Mosteiro, mas de uma igreja diocesana, a Igreja de S. Martinho de Soalhães, que nessa altura dispunha de uma arquitectura diferente da que é hoje: possuía espaços majestosos e uma elegante torre para sinos e relógio, separada do corpo da igreja e com um espaço que servia de aljube. O seu prior, pela importância que tinha a igreja, era Abade com cruz peitoral e isso significava que tinha ascendência sobre outras freguesias. Nesse ano, D. Sancho II retirou o padroado a Porto Carreiro e entregou-o ao Bispo do Porto, D. Pedro Salvador, que, por querer paz, o trocou com D. João Martins de Soalhães, bispo de Lisboa, familiar de Moniz e Porto Carreiro. Por sua vez, este Bispo, que tinha vários filhos, entregou estas terras a Vasco Annes de Soalhães, que foi legitimado filho de D. João Martins, pelo rei D. Dinis, a 18 de Janeiro de 1308. Ficou sepultado na capela-mor da igreja. 
 Igreja de Soalhães

         À medida que o poder real se foi concentrando, os reis promoveram inquirições para conhecer as terras, os seus proprietários e tomarem decisões de entregar terras a nobres da sua confiança. Para afirmar o seu poder D. Afonso III empreendeu as inquirições de 1258 que geraram muitos conflitos entre a nobreza e o clero. D. Fernando, por carta de Julho de 1373 pôs termo a esses conflitos, decidindo doar as terras de Soalhães a Gonçalo Mendes de Vasconcelos, que ali construiu um apalaçado edifício que veio dar lugar ao Solar de Quintã, concluído, tal como o temos hoje, em 1742,  ainda no tempo de D. João V.
         D. Manuel I, por carta do dia 15 de Julho de 1514, concede o foral de Concelho a Soalhães, que passou a abranger as seguintes freguesias: Folhada, Fornos, Mesquinhata, Soalhães, Tabuado e Várzea de Ovelha (Aliviada). Dispõe de um pelourinho e de uma administração da Justiça idêntica á do Concelho de Canaveses. Será talvez interessante saber que foram capitães-mor de Soalhães António Vieira de Magalhães, capitão da companhia do couto de Soalhães em 5 de Maio de 1781, António de Vasconcelos Corte-Real, capitão-mor em 2 de Março de 1795 e Inácio de Moura Coutinho da Silva Montenegro, em 11 de Setembro de 1830, último  a desempenhar este cargo.
         Soalhães é uma das maiores freguesias do Concelho. Ficou célebre por um crime, cometido em 1934, instigado por um bruxo de Ermesinde. Uma jovem epiléptica, que pertencia a uma família pobre do lugar de Oliveira, por “receita” do bruxo foi queimada por familiares na presunção de que ressuscitaria sem os ataques de epilepsia. No julgamento, o advogado de defesa, nas suas alegações, bem implorou aos magistrados que no banco do réu estivesse o verdadeiro autor do crime e não aquela gente humilde que só queria a saúde da sua familiar, mas não foi isso que aconteceu. Os réus foram condenados a pena maior. Por se tratar de gente honrada, o  peso do sofrimento, da revolta e da vergonha fez com que toda a família dessa jovem  desventurada desaparecesse de Soalhães, desconhecendo-se, ainda hoje, o seu paradeiro.
Casa de Quintã - Soalhães
 
        Bernardo de Santareno, pseudónimo do médico de Santarém, Dr. António Martinho do Rosário, era um homem de esquerda, que se preocupava com a sorte dos desfavorecidos. Foi médico junto da frota bacalhoeira portuguesa e conhecia bem os problemas sociais do seu País. O seu interesse por estas questões estimulava-o a escrever sobre as condições de existência da gente mais humilde . Sensibilizado com esta tragédia escreveu o livro “O Crime da Aldeia Velha”, que mais tarde, Cunha Telles, o grande promotor do cinema novo, transformou num projecto  para o cinema e Manuel Guimarães concretizou-o.
         Não é uma “peça” que apouque Soalhães ou o Marco de Canaveses, mas um trabalho de denúncia do regime salazarista, da exploração da ignorância e das crenças. Só por má-fé, numa construção sofistica, se pode tomar esta tragédia pela maldade de uma terra. O que aconteceu em Soalhães poderia ter acontecido numa outra terra qualquer, onde as circunstâncias fossem as mesmas. Soalhães e Marco de Canaveses foram sempre, na sua história, terra de gente boa e de honra e quem dela tem dado má imagem ou nunca teve nela raízes ou foram pervertidos por vigaristas que no Marco estenderam arraiais!
João Baptista Magalhães