quarta-feira, 19 de abril de 2017

NOSSA SENHORA DA LAPA




 CAPELA DA SENHORA DA LAPA
O contexto da época



Pelos meados de agosto de 1774, quando os primeiros raios de Sol secavam as últimas gotas de orvalho que humedeciam as flores que, a coberto da escuridão da noite, tinham sido colocadas pelos devotos das videntes nas suas campas, já o coveiro de S. João da Folhada cumpria as ordens do sr. Abade: retirar para o local o mais escondido e longínquo possível todas as flores. Receava que algum dos muitos milhares de informadores do Secretário do Reino, algum visitador da freguesia ou mesmo o Abade de Jazente, Paulino Cabral, fossem levados a pensar que na sua paróquia não se cumpriam as ordens que vinham em edital do Regimento do Santo Ofício, aprovado, em alvará, no dia 14 de agosto de 1774, assinado por Sebastião José de Carvalho e Mello e de “próprio motu, certa Sciência, Poder Real, e Absoluto”, por D. José I, determinando:

Todo aquelle que venerar a imagem de algum defunto não beatificado ou canonizado por autoridade da Igreja, posto que morresse em opinião de santidade será asperamente repreendido… e degradado para Castro Marim ou Cidade de Miranda por três anos…
Nas mesmas penas incorrerá aquelle que sem as precisas licenças pozer ou mandar pôr na sepultura do defunto alguma táboa, panno ou rotulo de milagres seus, ou imagens de qualquer cousa pintada ou pendurada, e lhe pozer alampada ou outro lume, ou lhe der outro algum culto ou veneração”.

O Abade levava muito a sério o que na altura se dizia: “Onde Sebastião de Carvalho e Mello pousar a mão para dar uma ordem ficam nódoas de sague.” E para que ninguém caísse na imprevidência de ignorar essa ordem, colocou o edital no portão do cemitério e na porta da sacristia.

CEMITÉRIO
O Meirinho do Concelho de Gouveia e Sobretâmega, a que pertencia S. João da Folhada, costumava lembrar que obedecer ao Marquês de Pombal era o mesmo que obedecer ao Rei e o Rei, D. José I, era semelhante a Deus.

Dizia-se, quase sempre em surdina, como se tratasse duma revelação feita num local sagrado, que o Secretário do Reino de D. José I seguia de modo implacável a orientação que vinha de D. João V: Tomar como ofensa ao Rei tudo o que o que o contrariasse ou fosse considerado heresia. E o Marquês do Pombal governava como se fosse, ele próprio, o Rei. 

D. JOÃO V
D. João V não se preocupou em preparar o seu filho para ocupar o Trono. Ele próprio governou a pensar só em si e não no reino e para encobrir o seu egoísmo deu ao seu reinado um sentido messiânico para que a Santa Sé lhe atribuísse o título de “Fidelíssimo” e “Cristianíssimo”, recebendo, assim, um tratamento igual ao das três grandes monarquias católicas da europa: França, Áustria e Espanha.

Fez tudo para se evidenciar como um grande defensor da ortodoxia religiosa e levou o absolutismo que copiava de Luís XIV até à proclamação da crença de que governava a meias com Deus.

Deslumbrado com a incomensurável riqueza que lhe chegava nas “naus do quinto” (traziam a quinta parte do ouro explorado no Brasil), passou a pôr a honra na despesa, imaginando causar espanto e colher admiração de outros monarcas com o esbanjamento dessa imensa fortuna em obras faraónicas, como o Convento de Mafra, embaixadas de cortesia ao Papa Clemente XI (chegou a ordenar que atirassem reais ao povo que via passar o cortejo de oferendas para mostrar a riqueza do reino) e entregou ao Santo Padre quinhentos mil reis para obter a licença de comungar pela sua própria mão. Manifestou ainda a pretensão de que essa faculdade fosse extensiva ao vinho consagrado, o que não foi aceite. Conseguiu, no entanto, que a Sé de Lisboa passasse a ter a honra de patriarcado.  

AQUEDUTO DAS ÁGUAS LIVRES
Foi um mecenas no apoio aos artistas, criou a Academia de História para enaltecer a vida dos reis e nobres com biografias e, por tudo isso, recebeu o cognome de “Magnânimo”. De todas as suas monumentais obras, a única que representou um valor social foi a construção do “Aqueduto das Águas Livres de Lisboa”.

Quando D. João V faleceu, o reino ficou mais atrasado no seu desenvolvimento que os estados do norte da Europa. Esta situação foi estudada pelo calvinista Max Weber na sua obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, onde acusa o catolicismo, pelo desprezo do lucro, de ser um entrave ao desenvolvimento do capitalismo.

O seu catolicismo apoia-se num espírito negocial: sempre que numa desmesurada luxúria partia de cabeça perdida para todo o sítio onde houvesse mulheres, aliviava a sua consciência com a compra de milhares de bulas.
CONVENTO DE ODIVELAS
Dizia-se que D. João V fez do casamento com a marquesa Maria Ana de Áustria apenas um aperitivo da sua voluptuosidade. No Convento de Odivelas tinha sempre à sua espera as mesuras dos frades para o conduzir junto às freiras que o recebiam à porta do quarto ou no edifício que mandou construir junto ao Convento. A sua freira preferida era a madre Paula que passou a receber, do erário, 1.708 reais anuais. Quando chegava a Odivelas tudo já estava preparado: o quarto perfumado, a cama de dossel forrada com lâmina de prata e rodeadas de veludos vermelhos e dourados e os jarros de prata onde urinava. Depois, reconfortava as suas forças com os mimos da doçaria conventual, que ficaram para a história como “toucinho-do-céu”, “barriga de freira”, etc.

Mas os seus caprichos libidinosos não se reduziam a freiras: segundo Alberto Pimentel, no seu livro “As amantes de D. João V”, não só se envolveu com a actriz italiana Petronilla Trabó Basilii e com Margarida do Monte, uma cigana de Lisboa, como também “roubava” as amantes dos outros. Mas não admitia que os seus vassalos seguissem as suas pisadas: mandou prender o corregedor Luís Borges de Carvalho por entrar de noite no Convento de Santa Ana, onde tinha amores com uma freira.

Diga-se de passagem que nesse tempo as donzelas não se tornavam freiras por vocação, mas porque seus pais não tinham encontrado um noivo que estivesse à altura da grandeza da família e, por isso, as enviavam para os conventos.

 CONVENTO DE MAFRA
D. João V não olhava a despesas para promover na corte os requintes que copiava de Luís XIV de França. Tomou o seu lema — “O estado sou eu!” --  e fez da corte um espaço de vida social, onde se dançava a pavana e o minueto ao som do violino, e davam-se banquetes que podiam ir de sete a sessenta pratos, com variadíssimas iguarias. Introduziu a moda das perucas empoadas, que mandava vir de França, casacas de seda, vestidos de anquinhas, sinais postiços no rosto, calções justos e sapatos de fivela, tudo o que fazia moda na corte de França. Ele próprio “ostentava véstia e calções de seda, camisote de fina cambraia, afogado o pescoço em rendas de fabuloso valor, sobre as quais a fita escarlate do Hábito de Cristo cravejado de diamantes”. E não aceitava que a plebe copiasse o estilo dos nobres. Fez editar pragmáticas (regulamentos), com prisão e multas pesadas a quem usasse trajes só permitidos á nobreza e ordenou aos marinhos que zelassem pelo cumprimento dessas regras, sem piedade. E se algum lavrador de posses, pretendesse subir na consideração social numa feira ou uma romaria, pela sua indumentária, sujeitava-se a que lhe acontecesse o que aconteceu a um tal Pedro, homem solteiro e lavrador da Aldeia Velha, na Aboboreira, que na Feira de S. Bartolomeu de Campelo andava vestido de forma bem vistosa: “levava um gibão de Londres, vermelho, com um mantéu e dianteiras, guarnecido de uma fitinha azul pespontada a dois espontos de seda, e também da mesma seda as mangas, e uns calções de guardalate, com duas barrinhas de seda nos joelhos. O Meirinho da Comarca de Gouveia e Riba-Tâmega, de nome Rui Borges, usou da sua autoridade e fez cumprir a pragmática dos trajes: por não vestir em conformidade com o estatuto da sua condição social, apreendeu-lhe o gibão e os calções e multou-o em 50 reis. E teve mais sorte que a senhora Catarina Tates, que, por levar para a Romaria de S. Gonçalo de Amarante na cabeça um chapéu todo forrado de tafetá, vestir um roupão de pano rouxo, debruado de veludo nas dianteiras, aberturas e ombros; gibão de veludo preto e um ferraguelo de pano preto, guarnecido no colar com cinco esguilhas, foi multada: pelo chapéu 150 reais, pelo roupão 3 cruzados e 30 reais e pelo ferraguelo 1.500 reais e pelo gibão 4 cruzados e 50 reais.

O sentido messiânico da governação levou D. João V a concentrar no seu poder a vida social, politica e religiosa. Criou um inimigo que aos olhos do reino justificasse as suas crueldades: os cristãos-novos. Fez depender de si o Tribunal da Inquisição e estimulou a denúncia de judeus, presumindo que praticavam às escondidas a sua religião, considerada herege. Dava orientações para que os familiares do Santo Ofício (polícias à ordem da Inquisição) os reconhecessem pela forma como se vestiam ou pelos costumes que tinham: se traziam roupas limpas e coloridas aos sábados, se limpavam as suas casas às sextas-feiras e acendiam velas mais cedo do que o normal naquela noite, etc., -- era certo que, em segredo, praticavam o judaísmo. Todos eles eram presos e acusados de em segredo praticarem o judaísmo. Uns morriam esquecidos nas masmorras, outros eram condenados à morte pelo fogo, tornada num espectáculo público.

Mandava apregoar os autos-de-fé pela cidade quinze dias antes, indicando o local da sua realização, que tanto podia ser o Terreiro do Paço como o Rossio. Queria que tudo fosse bem preparado e que arrastasse multidões para perceberem o que o Rei seria capaz de infligir aos que não seguissem a sua vontade: montavam-se camarotes com bancadas de madeira, dispondo de patíbulos para acomodar fidalgos e as ”damas da corte tinham o privilégio de lhes ser servido água de neve para se refrescarem, enquanto as carnes dos condenados rechinavam.” Fazia questão em se deslocar para o local no coche revestido a ouro, que o costumava levar à ópera, acompanhado por uma comitiva de nobres, magistrados e damas da corte ricamente vestidas. Levava tanto a peito esse espectáculo da morte, que terá pedido ao senado da medicina que adiasse uma sangria a um inchaço que o preocupava para ver o auto de fé.

Quando via a plebe, a nobreza e o clero vibrar com esse espectáculo de terror, dando largas aos instintos mais mórbidos e impiedosos, gritando, incitando e bracejando naquela volúpia de sangue, sofrimento e morte, manifestava-se feliz e lisonjeado com todo esse bárbaro delírio. Foi durante o seu reinado que aconteceram mais autos-de-fé, cerca de 28. Quando lhe lembravam que o Padre António Vieira, nos seus sermões censurava a Inquisição, repudiava a pena de fogo por contrariar a doutrina de tolerância e amor de Cristo e defendia que os judeus, pelo seu espírito empreendedor, contribuíam para a riqueza do reino, respondia que os sermões do pregador eram “triquetraques” e que o seu encarceramento pelo Santo Ofício foi um bom trabalho na defesa da fé no tempo do seu avô, D. João IV.

D. João V não se incomodou com o facto de ter havido, durante o seu reinado, uma enorme sangria de intelectuais e homens do negócio. Lá fora, nos países que os recebiam, puderam estudar e exercer com competência uma profissão, distinguindo-se como reformadores e notáveis homens de letras e de ciências, como aconteceu com Verney, Ribeiro Sanches e muitos outros.

A fuga para o estrangeiro desta gente afectou, como previa o Padre António Vieira, a economia nacional: fecharam-se fábricas de sedas, lã, curtumes em Trás-os-Montes e na Beira, perderam-se comerciantes e muito do dinheiro, que era possuído pelos cristãos-novos, também saiu do reino.

 AUTO-DE-FÉ
Entretanto, por cá, quem queria ter acesso a um título de nobre ou acesso aos diferentes cargos da organização do reino, eram obrigados a adquirir um atestado de “limpeza de sangue”, emitido pela Inquisição. E, se tinha um texto para publicar ou queriam ler um livro, estavam obrigados a consultar o censor desse Tribunal para colocar o “nihil obstat” ou, então, proibir a sua publicação. Os livros que constavam do Index Librorum Prohibitiorum não podiam ser lidos, retidos ou divulgadas, mas entregues ao Santo Ofício para, durante os autos-de-fé, serem queimados. Pela imensa procura que houve, de títulos de limpeza de sangue desenvolveu-se uma enorme corrupção entre os funcionários do Santo Ofício, que passaram a negociar estes atestados.

Por volta de 1741, já com idade avançada, recorria ao boticário das Portas de Santa Catarina para socorrer a sua luxúria com excitantes, particularmente cantáridas e essências de âmbar. Rapidamente a sua saúde foi-se arruinando, sofrendo um primeiro ataque em 1742 que o paralisou. Aconselhado a fazer tratamento nas Caldas da Rainha, ordenou a construção de uma ampla estrada até essa Cidade para facilitar a sua ida e regresso a Lisboa e pediu ao jesuíta, Padre Malagrida, que tinha fama de santo, que o acompanhasse.

Em 29 de Julho de 1750, o Cardeal-patriarca de Lisboa administrou-lhe a Extrema-Unção e dois dias depois faleceu. Tinha, então, 60 anos.

D. JOSÉ I
Foi neste contexto que em Julho de 1750, D. José recebeu o trono. Entre os nobres houve quem ficasse preocupado. D. Luís da Cunha, grande diplomata e conselheiro (raramente ouvido pelo rei) previu o que viria a acontecer e no estilo de recomendações ao príncipe, advertiu-o em carta, dizendo:  “Deus não pôs os ceptros nas mãos dos príncipes para que descansem, senão para trabalharem no bom governo dos seus reinos; trabalho que lhe será muito suave, se repartir bem e alternativamente as suas horas, porque estou certo que lhe sobejarão as que bastem para as empregar nos divertimentos que convém ao seu carácter, entre os quais conto o da caça”. Mas, D. José preferia a caça, as touradas e as mulheres do que seguir os conselhos de Luís da Cunha e ansioso por ter quem o substituísse nas tarefas de governar, aproveitou a sugestão do seu confessor, o jesuíta José Moreira, e nomeou Sebastião José de Carvalho e Mello secretário do reino, um cargo equivalente a ministro.

D. LUIZ DA CUNHA 
Os mais avisados da alta nobreza já percebiam que era necessário romper com o estilo de governação absolutista, que o reino tinha de se desprender dos hábitos seculares de ver o mundo, a vida e a relação entre o rei, o clero e os súbditos, que vinha dos tempos medievais, que era preciso sair do estado calamitoso em que se encontrava as finanças do reino e abraçar o espirito de tolerância que dava confiança ao empreendedorismo da iniciativa privada. Por toda a Europa já se difundiam as ideias liberais de Locke (cada homem tem direito natural à vida, liberdade e propriedade e pretendia que se substituísse o absolutismo no governo pelo estado de direito) e as “novas luzes” que tiveram influência na independência da América, difundiam o “Espirito das Leis” proclamado por Montesquieu no qual se defendia o fim da escravidão, a  separação de poderes (religioso e civil) e a defesa das liberdades.

Essa pequena elite de nobres não acreditava em Sebastião José de Carvalho e Mello. Considerava-o de mau carácter, que tinha sido um medíocre embaixador em Londres e na Áustria e que na sua juventude não gozava de boa fama (foi corrido da Universidade de Coimbra e dos estudos militares, andou envolvido num bando de arruaceiros que provocavam desacatos durante a noite nas tabernas de Lisboa e era acusado de raptar a sobrinha do Conde dos Arcos). Viam nele um homem intempestivo, rancoroso, que não olhava a meios para atingir os seus fins. E neste sentido, capaz de agravar a concepção tirânica do poder que vinha de D. João V.

É neste contexto que se vão dar as aparições de Nossa Senhora num grande penedo, chamado Lapa, em S. João da Folhada, das quais falaremos a seguir.

14 de Abril de 2017
João Baptista Magalhães

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