segunda-feira, 17 de outubro de 2016

GENTE DECENTE II


Quando ouvimos falar da maçonaria, muitos de nós torce o nariz. Associamos a maçonaria a gente não decente, que se entrega a grupos sigilosos na ambição de fazer, na sombra, carreira política, influenciar negócios, obter favores e subir na escala social.
Mas a maçonaria tem uma história que nada tem a ver com esse pântano. Não é preciso procurar nos primeiros tempos a sua relevância no progresso da humanidade. Basta ver as grandes catedrais inglesas, muitas obras de arte e conhecer a importância dos  conselhos dos astrólogos na vida económica, social e política da antiguidade. Nesse tempo, nenhuma guerra, nenhum negócio, nenhum casamento se fazia sem consultar um astrólogo.
Refiro-me, sobretudo, à maçonaria que se desenvolveu a partir da reforma de Lutero, que se inspirou na “Carta sobre a Tolerância” de Locke, no liberalismo inglês e ouviu o apelo de Kant: “Ousa pensar!”
Esta maçonaria, que, a partir do séc. XVII/XVIII, cresceu pela influência de personalidades inglesas, esteve sempre com o rosto a sangrar. Por ser contra o totalitarismo e o elitismo (aristocrático ou outro), por defenderem a causa da igualdade, fraternidade  e liberdade, por ser pelo progresso e contra o conservadorismo, muitos maçons morreram  nas fogueiras da Inquisição (só no tempo de D. João V foram 22 homens  e 11 mulheres); outros, foram fuzilados e ainda outros, foram esquecidos nos cárceres, obrigados a exilar-se ou a morrer na miséria.
Acusavam-nos de trair a pátria, querer impor o liberalismo e proclamar o ateímo, mas a maçonaria aceitava a religião natural e nunca se opôs à cristã. É certo que foi contra o clericalismo conservador por o considerar herdeiro do conservadorismo aristocrático, elitista e contra o progresso. Mas teve nas suas fileiras bispos, como D. António Barroso, bispo do Porto e D. António Alves Martins, bispo de Viseu,  que chegou a participar na revolução liberal do Porto e escapou à condenação à morte, graças á convenção de Évoramonte. E ainda há pouco anos, se realizou um congresso maçónico na Universidade Católica. Por alguma razão, S. João Evangelista é o protector do Grande Oriente Lusitano e o dia 27 de Dezembro, dia do  seu nascimento, o Dia da celebração maçónica.
A utopia do maçon,  como o conceito indica, é ser “pedreiro livre”- metáfora usada para significar “livre pensador”. Foi, por “ousarem pensar livremente”, não seguirem cegamente o “chefe” ou o “magíster dixit”, por serem contra o totalitarismo, o elitismo ou os que se julgam possuidores da verdade, que os maçons foram considerados desestabilizadores da “ordem reinante” e se tornaram num inimigo público a abater.
Foi isso que aconteceu ao grande médico e cientista, o maçon Miguel Augusto Bombarda, que, na véspera do 5 de Outubro,  foi assassinado às 11 horas, no seu gabinete do Hospital de Rilhafoles, em Lisboa, pelo tenente Aparício Rebelo dos Santos que confessou ter sido instigado a fazer o crime pelo clero que o acusava de não se subordinar aos dogmas da Igreja. Podíamos ainda falar dos que foram exilados ou presos durante o fascismo.
À maçonaria pertenceu gente de todas as classes e profissões: generais, homens da ciência, escritores, artistas, músicos, como Mozart (a Flauta Mágica é uma composição maçónica), engenheiros, como Gustavo Eiffel ou poetas, como Fernando Pessoa.
A doutrina maçónica genuína, a que está nos regulamentos do Grande Oriente Lusitano (recentemente apareceram outras maçonarias, p.ex, a regular, a do rito francês, etc)  orienta os seus membros pelo caminho que leva a felicidade aos seus semelhantes, a colocarem na solidariedade o sentimento de fraternidade e romperem com o egoísmo, considerado “pedra bruta” que é preciso desbastar.
”Sem virtude não se pode chegar à verdade” – foi sempre o lema maçónico, o que distingue  o verdadeiro maçon dos mixordeiros, dos que, em vez de servirem causas, se  servem das causas.
Deve-se à maçonaria as ideias liberais, a implantação da República e a luta contra o totalitarismo e contra todas as formas de aristocracismo, oligarquismo ou elitismo. A criação da Associação  Académica de Coimbra, em 1887, foi obra de maçons. O espírito das repúblicas (casas de estudantes que punham em comum a organização da casa) é maçónico e é muito natural que este espírito continuasse a ser uma força agregadora de muitos intelectuais em muitas cidades e vilas da província.
No Marco de Canaveses houve um Triângulo Maçónico (célula base) do qual fizeram parte, o Juiz Conselheiro (expulso da magistratura) Crispiniano da Fonseca, o Dr. Cristiano Borges e o Dr. Mário Lobo.  Só o Juiz Conselheiro se manteve até morrer na maçonaria. Os outros, “meteram atestado de quite” e libertaram-se das obrigações maçónicas:  frequentar a sua loja (estrutura das assembleias), participar nos rituais, elaborar as suas pranchas (dissertações sobre temas que ajudem ao aperfeiçoamento moral, espiritual  e intelectual do maçon), etc.
Um dos símbolos da maçonaria é o fio de prumo. A imagem que fiquei dessa gente foi precisamente a de serem como um fio de prumo. Não se poderia esperar deles a hipocrisia, o dizer uma coisa e fazer outra, a conversa fiada, nem faziam da liberdade ou da verdade uma questão de circunstância. Eram homens de convicções, capazes de as alterar se, racionalmente, reconhecessem que estavam errados e   de relação simples e agradável.
Tive muitas vezes boleia com o Dr. Mário Lobo e com o Conselheiro Crispiniano. Lia sempre o que escreviam no Jornal “Marcoense”. Possuo algumas monografias sobre o Marco  do conselheiro Crispiniano da Fonseca e do Dr. Cristiano Borges.
Para mim, fazem parte daquele número de homens decentes que já nos deixaram. Na suas vidas, assemelharam-se ao fio de prumo: verticais, sem os rodeios das conveniências, o folclore dos homens teatrais, o “chico-espertismo” dos oportunistas.
Tenho-os, por isso, entre os homens decentes que fazem parte da história do Marco de Canaveses e disso quis dar testemunho, sem estar ligado à maçonaria, como muitos leitores deste texto, que gostam mais de supor nas entrelinhas do que debruçar-se sobre a história, vão fazer crer. É sempre mais fácil diabolizar que aprender com os bons exemplos.
2016- 10 – 17
João Baptista Magalhães
Área de anexos

1 comentário:

  1. Texto muito lúcido que se torna muito importante porque escrito por um nâo Maçon!
    Bem Haja João Baptista Magalhães!

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